A HISTÓRIA DO DIVERGÊNCIA

Qual a temperatura? Divergência Socialista: Aqui & Aqui, 1981-2022

 

Pós-Punk minimal, anti-música, dadatapes, disco-not-disco, arte pop, poesia sonora, eletrônica lo-fi, canções angulares, DIY eletro-sambas, CASIO songs sob antropofágismos-intertextuais [de Oswald de Andrade a Cabaret Voltaire, de Maiakóvski a Kraftwerk; de Torquato Neto a Júlio Barroso, de Dolores Duran a Dee Dee Jackson & The B52’s] – ora em estilhaços experimentais, ora em vertente melódico-existencial – foram (e são) alguns dos muitos territórios sônico-poéticos habitados durante a extensa e singular trajetória da inovadora banda Divergência Socialista (DS). 

 

Formada em Belo Horizonte no início dos anos 1980 pelo poeta, pesquisador, músico e um dos fundadores do coletivo Cemflores, Marcelo Dolabela (1957-2020) – letras, vocais, dadatapes – a partir dos primórdios da banda Sexo Explícito, o DS surge dentro de um cenário pós-punk ainda em constituição na cidade, cuja estética propunha experimentações musicais e ações que fugissem do lugar comum da época.

Em sua primeira dentição, inicialmente com a fotógrafa Fabiana Figueiredo a.k.a Fabiana Andopov (voz), Gato Jair (voz),  Roberto Nosso (guitarra), e os integrantes do Sexo Explícito (Marompas, Rubinho Troll, John Ulhôa e  Roger Mendonça); e logo em seguida em conjunção planetária-amorosa com a vocalista e performer Silma Bijoux O’Hara, parceira fiel de Dolabela ao longo de praticamente todas as formações seguintes da banda até a sua morte em 2020, o DS se estabelece como uma entidade experimental pós-tropicalista de verve pós-punk no efervescente e iconoclástico cenário underground belo-horizontino dos anos 80 em meio ao tumultuado processo de redemocratização do país.  

Atuando ao mesmo tempo como um coletivo-mutante e celeiro de novos talentos, o ‘Divergência’ [como todos os que passaram pelo grupo se referiam a banda carinhosamente] nasce essencialmente como um organismo comunal e aglomerativo; contando com a participação de vários músicos, poetas e compositores de bandas-irmãs que operavam no frutífero circuito pós punk local, e ensaiavam no mesmo estúdio da Rua Jaspe no Bairro Santa Tereza.

Integrantes dos grupos Sexo Explícito, R. Mutt, Ida & Os Voltas, O Último Número, Albânia Berg, Sustados Por Um Gesto, Os Contras, Corpo Delito, entre outros; todos, em algum ponto de suas trajetórias artísticas passaram a integrar o Divergência Socialista como membros da banda, tornando-se vetores essenciais na articulação de sua sonoridade e estética musical, e estabelecendo assim, uma identidade sônica particular (luminosamente promíscua e prolífica) às suas diversas formações. 

É assim que ao longo da primeira década de existência da banda, Silma Bijoux O’Hara – voz, Marompas – baixo (Sexo Explícito), Rubinho Troll – bateria, teclados (Sexo Explícito) e John Ulhôa – bateria, teclados, programações, (Sexo Explícito, Pato Fu),  Aleca A. de Alexandria – teclados, drum machine (Ida & Os Voltas e Albânia Berg), Bruno Verner – programações, guitarra, teclados, voz – (R. Mutt, Ida & Os Voltas, Tetine), Bob Faria – baixo (Sustados por um Gesto), Carlos Henrique (Tonael Grael) e Alexandre Gallo (Sustados por um Gesto), e Waltão – teclados (Serpente) se associam a banda, compondo, tocando, re-semantizando e expandindo seu repertório em combinações musicais ao mesmo tempo distintas, mas complementares.

Em atividade plena durante a segunda metade da década perdida, o Divergência se apresenta frequentemente pelo circuito alternativo de bares, clubes, e universidades em importantes espaços da cidade na época. Casas noturnas como Canil, Babyork, os teatros do DCE da UFMG, do DCE da PUC, ICBEU, o legendário bar Complexo B; casas de shows como Cabaré Mineiro, Crepúsculo dos Deuses, os bares Trincheira, Incapazes do Nirvana, Objeto Banana, as lojas Câmbio Negro, o brechó Pó Moderno de O’Hara, a Boggie Woogie Livros de Dolabela e Fatinha Lamounier na então Galeria Praça 7, e as ondas da rádio alternativa Liberdade FM em Betim, fizeram todos parte da história da banda; serviram de palco para muitos de seus shows, lançamentos, e planos para o  futuro.

Ao percurso da banda soma-se também a militância de esquerda de Dolabela desde os anos 1970, e a participação do DS em comícios e atividades culturais do PT pela Grande Belo Horizonte, além de shows marcantes em São Paulo (Madame Satã, Ácido Plástico), Rio de Janeiro (Nau Botanic,); e apresentações em cidades mineiras como Juiz de Fora (Espaço Cultural) e Divinópolis (Theatron).

Do mesmo modo, esses fluxos continuariam posteriormente nas próximas décadas (1990, 2000, 2010, 2020)  com músicos como Délio Esteves (Corpo Delito), Clôde (O Último Número), o baixista Fernando Righi, a atriz Ana Gusmão, a cantora Sylvia Klein, a performer Andréa Dário, o poeta e guitarrista Francesco Napoli (Carmen Fem, Falcatrua), o baixista Dota Bones (Os Contras), o guitarrista Ronaldo Gino (Virna Lisi, O Saída, Radar Tantã), além de Nísio Teixeira, Mamede, Hector Gaete, Luiz Lourenço, Alexandre Martins  (Caveira My Friend) entre outros que passaram pelas inúmeras formações da banda. 

Um pouco ao modo da quadrilha de Drummond … “João que amava Tereza, que amava R…” ou “no extenso dial crono-espacial das modernidades”, como Dolabela teorizava poeticamente os campos e laços subterrâneos de invenção sonora e poética que enxergava na cidade em constante mutação. Isto é, na trajetória de músicos, poetas, artistas; suas ações, suas linguagens específicas e seus modos de operar, como um emaranhado de referências e influências que circulavam pela órbita do Divergência Socialista.

De modo similar, e diria até, em sintonia acidental-conceitual com organismos pós-punks internacionais como a banda britânica The Fall conduzida por Mark E. Smith, também famosa por metamorfosear-se em múltiplas formações e identidades sônicas ao longo dos seus mais de 40 anos de existência.

A discografia do DS não é extensa, devido a uma série de fatores, dentre eles: os altos custos dos estúdios de gravação no passado, bem como a inexistência de tecnologias que possibilitassem a democratização do acesso, como na atualidade.

Nos anos 80, a banda registra duas fitas cassetes; Christine Keeler (1986), lançada pelo selo-loja de discos Câmbio Negro Discos e Lilith Lunaire pelo selo Bomb em 1990. Esses dois únicos álbuns da banda apresentam boa parte do repertório produzido e gravado por duas de suas formações clássicas em atividade entre 1986-1988 (1°) e 1988-1990 (2°). A primeira, com Marompas, Rubinho Troll, John, Silma Bijoux O’Hara e Marcelo, e posteriormente com Aleca A. de Alexandria e Marompas; e a segunda, com Bruno Verner, Aleca, Silma e Marcelo. Nestes dois trabalhos estão inclusos micro-hits do underground mineiro como “Fahrenheit 451/ Jeanne Seberg” (a.k.a Dada Musik), “Toyo & Mokurai” (a.k.a ‘O Aplauso’), “Cú de Comunista” [cujo clássico vídeo da canção é estrelado pelo saudoso cineasta Aron Feldman, e dirigido por Patrícia Moran], “No No Nuke”, “Colt 45”, além de tracks como “Thomas Morus Dub/ Aqui & Aqui”, “Cindy and Kate / Rímel Broadcasting,” “Duas Inglesas e O Amor”, “Lilith Lunaire”, “Maysa/Mother No. 851”, “Beatrice Dalle” entre outras. 

Sua primeira fita Christine Keeler contém minimalismos e experimentações sonoras em forte diálogo com a poesia marginal dos 1970, incorporando o uso intenso de ‘dadatapes’ sob vozes, baixo, casiotone, bateria acústica e presets eletrônicos. No mesmo K7 estão também versões ao vivo de músicas como “Droga de Partido” e “Cú de Comunista” gravadas no show “As Armas” em 1984 no DCE da UFMG. Já o segundo cassete, Lilith Lunaire, apresenta uma pegada eletrônica avant-pop ‘lírica e junguiana’ com canções angulares de amor, queer-disco punk, além de ‘Silmúsicas’ como Marcelo definia, e eletro-sambas (melancólicos ou solares) entrecortados por uma atmosfera antropofágica-passional com músicas dedicadas à Maysa Matarazzo, Dolores Duran, Astrud Gilberto, Sylvia Telles, Thomas Mann, Beatrice Dalle, Cindy Wilson, Kate Pierson, Camille Claudel, Patrícia Galvão, entre outros. Nessa fase, a banda passa também a fazer uso de uma instrumentação mais eletrônica, introduzindo sintetizadores, baterias eletrônicas, além de um sequenciador e um sampler à sua sonoridade. 

Nos anos 2000, foram produzidos ainda dois CDs: Cacograma (2001) e Substância: Divergência Socialista, Marcelo Dolabela & Parceiros (2013). Todos esses registros são gravações independentes.

 

As canções que compõem o CD Substância, uma espécie de síntese das produções da banda, são um percurso de Marcelo Dolabela e seus parceiros nos conturbados anos 70-80, mas também nos anos 90 e 2000. O álbum inclui canções gravadas em shows ao vivo, músicas de suas duas fitas K7 remasterizadas, além de parcerias de Dolabela em gravações de bandas e artistas como O Grande Ah (“Funk Congo”, “Mister Masoch”), Sustados Por Um Gesto (“Eu Te Amo Nº 145”), Alda Resende (“Trem Fantasma Número 2”), Tetine (“Mata Hari”), Silvana e A Máquina do Tempo (“Histeria”), Zanzara (“Maletta’s Raga”), Marcelo Paganini (“Assim Caminha A Humanidade”) e Caveira My Friend (“Charles Anjo 90”).

Herdeira do desdobramento das vanguardas clássicas [futurismo, dada, surrealismo e modernismo], mas também associada à cartilha tropicalista de Caetano Veloso, Gil, Os Mutantes, Tom Zé e Rogerio Duprat, em comunicação direta com a nova música popular mundial, e pela lógica-sensorial de que é melhor inventar do que repetir; ou ainda, “experimentar o experimental” como diria Hélio Oiticica, incorporando o faça você mesmo tanto do punk como do pós-punk à teoria e a prática da experimentação conceitual nos universos sonoro, textual e performático; a força poética e singularidade do Divergência Socialista se articulava (e ainda se articula, agora em sua volta, passados 40 anos) pelo desejo de estabelecer utopias radicais e poéticas.

A pergunta a se fazer é: como evocar a complexidade de sua história singular como uma entidade pós-punk dada-futurista (feminina) e antecipadora, atravessada por sons-silêncios, alimentada pela poesia urbana contemporânea, pelo legado dos modernismos, pela militância estudantil, por sonhos, teorias, genealogias sônicas e outros desejos?

Em uma das últimas vezes que nos falamos em Belo Horizonte, Marcelo me disse, citando Duchamp: “Não repetir, apesar do bis” – uma de suas tantas referências em fluxo no seu rizoma teórico-poético-genealógico sensorial sempre em expansão.

Ou ainda, na frequência de Maiakóvski: “Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”. 

 

O DS produziu música de invenção em estado coletivo-bruto, autodidata: DADAMUSIK de Invenção. Seu legado, e sua trajetória se refletem no extenso repertório de composições, remakes & re-takes de suas diferentes fases; e em sua particular leitura político-existencial-ficcional da realidade e seus simulacros. Aqui & Aqui, as ilhas engolem o continente. A vida pelos olhos. Uma hidra de mais de sete cabeças. Ergo em silêncio a cidade submersa. Dormimos, acordamos e continuamos na utopia.

 

Bruno Verner, Londres, 1 de setembro de 2022.

 

 

 

PRIMEIRA FASE (1983 – 1988) – CHRISTINE KEELER

DIVERGÊNCIA, sim, SOCIALISTA, também.

Por Gato Jair

Com muito orgulho, posso afirmar que fiz parte do grupo poético-performático-musical originalmente criado por Marcelo Dolabela entre 1983 e 1984. E com satisfação imensa recebi há pouco o convite para escrever sobre tal experiência, quase 40 anos depois, quando o mesmo/outro grupo retorna, após a morte de seu fundador em 2020. De fato, são muitas as formações da /do Divergência Socialista, o que faz jus ao nome que Dadalobela deu ao seu projeto e à sua realização, nome que brinca com o de uma vertente das esquerdas do início dos anos 80 no Brasil: ao invés de Convergência, Divergência. Uma concepção e proposta radicalmente democrática, plural e aberta, tanto de política quanto de arte.

Assim, temos aí uma dica sobre o que Marcelo e eu mesmo já queríamos realizar, no fim da ditadura: algo que desafiasse tanto a dita-cuja, então caindo de podre, depois de quebrar o país durante vinte anos; e algo que ao mesmo tempo levasse a oposição político-cultural, principalmente a esquerda de que fazíamos parte, a repensar e rever sua “caretice”. Ou seja, seus preconceitos e posições cristalizadas, sobre tudo o que nos cercava, inclusive o que se fazia no campo da cultura, principalmente na arte de esquerda.

Com tudo isso, acabamos por criar incompreensões tanto de um lado quanto de outro, pois se tratava da dialética da divergência. Por exemplo, com a célebre canção “Cu de cumunista”, chocante à esquerda pela referência “cumunista”, que não entenderam; e também à direita, pela palavra “cu”, execrada de modo moralista. Além do mais, a letra do Marcelo, equacionava várias siglas, tanto à esquerda quanto à direita, causando um necessário desnorteamento.

Depois de alguns shows performáticos no DCE Cultural da UFMG, entre 1983 e 84, uma lembrança marcante dessa época é a de uma apresentação da Divergência na Praça do Papa, em BH, com algumas das chamadas grandes figuras da música mineira, onde fomos alvejados no palco com latas e até garrafas de cerveja. Lembro-me também de que alguns shows do grupo, junto aos do Sexo Explícito, grupo também formado por Marcelo, de que participei, eram visados pela Polícia Federal, já desde os nomes das bandas nos cartazes provocativos, em tempos de final da ditadura. A origem poética dos grupos era ignorada e também causava estranhamento. E, por exemplo, quando divulgávamos que o som da Divergência Socialista era minimalista – termo relativo à música erudita de vanguarda – acontecia de aparecer gente dessa área artística que encontrava nos shows algo inclassificável, que misturava o punk e o pop, o poético e o performático, a canção brasileira e as referências estrangeiras não só da música, mas também da poesia neodadaísta e da política.

Pode levar um pouco mais de tempo, mas as letras e os agitos de Marcelo Dolabela em sua fundamental criação no cenário poético-musical-performático do Brasil ainda serão reconhecidos porque, quase 40 anos depois, ainda está vivíssima sua Divergência Socialista. Quanto a mim, só tenho coletivo imenso de criação (anti)artística, que muito contribuiu para que eu descobrisse minha própria voz poética e colocasse meu corpo em cena, junto a tantos amigos e amigas, em BH, e além.

SEGUNDA FASE (1988 – 1990) – LILITH LUNAIRE

EM BUSCA DO FUTURO: AS PRAIAS DESERTAS QUANDO IREMOS VER?

Por Bruno Verner

Ergo em silêncio a cidade submersa. Papéis sobre a mesa, a cidade submersa. Aqui adentramos o universo lírico-junguiano do Divergência Socialista em registro experimental quase-pop, abrindo espaço para uma nova Mesopotâmia eletrônica de canções angulares autorais, disco-not-disco, Silmúsicas, eletro-sambas malemolentes, mas também atravessando caminhos atonais populares e venenosos (de Arnaldo Schoenberg a Arrigo Barnabé), além de outros pós-tropicalismos. De Maysa Mother No.851 a Dee Dee Jackson, de Beatrice Dalle a Yemanjá em Wonderland; de Cindy Wilson a Jair Rodrigues. Quanto vale o show? Deixe que digam, que pensem, que falem, deixe isso pra lá, vem pra cá o que tem. Sabíamos: It’s just an illusion. I am your automatic lover.

Lilith Lunaire foi um momento lunar, eletrônico, solar-sequencial vivido, sentido e musicado entre 1988 e 1990; de verve luminosa, melancólica, feminina e queer ao mesmo tempo. Aqui começamos a fazer música eletrônica pela primeira vez, inicialmente formatados como um quarteto (Marcelo Dolabela – voz, letras, samples, Slima Bijoux Ohara – voz, samples, Bruno Verner – voz, programações, guitarra, piano, Aleca A. de Alexandria – teclados) e um pouco mais tarde nos tornamos um trio; munidos de um sintetizador DX 100, um módulo multi-timbral Roland MT8 – adquiridos coletivamente pela banda – e um sequenciador MMT8 Alesis.

Foram muitas as músicas compostas nessa fase. Três Tristes Tigres. Músicas que vinham, músicas que ficavam, músicas que eram testadas em shows; músicas gravadas em fitas de ensaios, músicas que se perdiam, músicas que ficaram gravadas somente na memória (tanto sensorial quanto muscular). Um repertório extenso que conseguimos mais tarde condensar em 10 faixas para a gravação da segunda fita cassete intitulada Lilith Lunaire e lançada pelo selo Bomb em 1990.

Perdidos na cidade entre apartamentos, bares, conversas, amores e dores, e empenhados na articulação de uma trilha sonora futurista. Em busca de outros tempos. Pra que odiar? Amar com o aval dos rivais é mais legal. Entre Camille Claudel, o outro bando e o bando de Rodin. Entre Astrid Gilberto, Dolores Duran, Patrícia Galvão, Beatrice Dalle, Sylvia Telles. A vida pelos olhos. Entre Rita Lee e a “Fuga Número Dois dos Mutantes”. Entre Rita Pavone e a Krakatoa ao leste de Java – em outras palavras, a nossa onda de amor não há quem corte.

Houve ainda lugar para o samba de Zé Keti e Rômulo Paes: a minha vida é essa, subir Bahia, descer Floresta. Numa ode à cidade e ao reduto intelectual belo-horizontino, entre o centro e o bairro. Houve também lugar para o europeísmo glacial e sintético de Kraftwerk, para a eletrônica molhada de Georgio Moroder & Donna Summer, e a luminosidade kitsch-húngara-italiana de Cicciolina. Todos foram ao parque industrial do Divergência Socialista de Lilith Lunaire. [On the radio!]. Pela cara ninguém sabe quem é o marginal.

 Entre 1988 e 1990 na companhia de Yoko Ono, May East, Lili Brick, Brigitte Bardott, Elizete Cardoso, Thomas Mann, Jean Pierre Léaud e o cinema de Francois Truffaut. Vens nu com Vênus entre nuvens, as ilhas engolem, o mar e o continente. Viver e possuir só bons pensamentos, o toque mais frágil da mão, só o tempo sente.

Assim nasceu a nossa “Pierrot Lunaire” tropical, mas em forma de canção. O que muitos não sabem, é que sua primeira versão era uma boa ‘bedroom discothèque’ melancólica, mas acabou virando uma canção.  A distância é o mar, eu vejo a ilha paraíso de Yemanjá. Nada de viver é deleite, assim você talha o leite, onde a paixão é a nata. As praias desertas quando iremos ver? As praias desertas. E antes de mim, antes de você. Lilith Lunaire, Pierrot Lilith Lunaire. Ainda estamos respirando.

 

TERCEIRA FASE (1999 – 2002)  – CACOGRAMA

Quinta formação. A volta do Divergência. Base pra poesia.

Por Délio Esteves

Fim de século. Quase novo milênio. Um Divergência eletroacústico básico para a poesia de Dolabela com o apoio luxuoso da atriz Ana Gusmão, além do vocal marcante da Silma Bijoux O’Hara. No baixo, Fernando Righi; na bateria, Clôde Franco; eu na guitarra. Em alguns shows, tivemos a participação do tecladista Cláudio.

Uma das primeiras apresentações dessa fase (talvez a primeira) foi em maio de 2000 num festival patrocinado por uma marca de cerveja nas estações de metrô de BH*. Talvez por coincidência, a estação que recebeu o Divergência foi a da Lagoinha, a 1km de distância da antiga Fafi-BH. A mesma faculdade em que, por volta de 1992, passei a me encontrar com Marcelo fora do “ambiente de música”.

Em 99, junto com Fernando Righi, começamos a nos reunir com Dolabela para tentar aprender as músicas das fases anteriores e começar a compor novas, sempre abrindo privilegiados espaços para os “recitais” de poesia. Além de novas versões para “No no Nuke” e outras da década de 1980, surgiram composições novas, como Heidegger’ Song, Todos me odiavam naquele bar, Alice no céu da Amazônia, Caminhos de Muriel e Assis & Eu.

Nessa fase, também montamos o espetáculo “Loucura Popular Brasileira”, com uma única apresentação no então Centro de Cultura de Belo Horizonte, atual Museu da Moda, ao lado do Maletta. Em 2001, produzimos o CD “Cacograma”.

 

* Nesse show, um conhecido músico mineiro, que tinha acabado de voltar de uma turnê no Japão, teria dito que era um absurdo “uma banda punk” se apresentar no mesmo palco que ele e avacalhar o som. [“Toquei para um imperador e não preciso passar por isso.”] Ele achava que, como constava do roteiro definido pela produção do festival, o show do Divergência seria um recital de poesia.

 

QUARTA FASE (2016 – 2020) –  SUBSTÂNCIA

Conclusão: O Modus Operandi Divergência Socialista

Por Cesco Napoli

Conclusão: assim Dolabela gostava de enunciar o início de uma conversa, em mais um de seus sagazes bordões. Artista da linguagem, Dolabela gostava de transitar em suas diversas possibilidades, se valendo de universos díspares, do erudito ao marginal, do pop ao experimental, rompendo com preconceitos da academia, utilizando dispositivos de toda ordem, misturando publicidade, experimentalismo, tradição e vanguarda.

Tal modus operandi se mostra radicalmente experimental, justamente quando mescla seus incomuns itinerários artísticos com seu copioso caleidoscópio de referências, que vai da literatura erudita a cultura pop, em um movimento dialético entre margem e centro.

Este modus operandi, que é a essência do Divergência Socialista, estava em praticamente todos os projetos de Dolabela, em publicações, objetos, canções e na própria personalidade desse amigo que tinha comportamentos excêntricos, tais como sair sem se despedir. Simplesmente deixar uma conversa e se retirar sem formalidades ou satisfações e, no outro dia, agir normalmente, deixando claro que, com ele, uma convenção podia ser rompida para que outros modos de se relacionar pudessem surgir, para além da superficial formalidade.

Conheci Dolabela no final da década de 1990, quando minha mãe me indicou um colunista no jornal Hoje em Dia do qual eu iria gostar. Comecei a ler a coluna do Dolabela assiduamente todas as semanas até descobrir que ele era professor da faculdade na qual eu estudava. Então, tomei coragem e me aproximei dele, que andava sempre lépido pelos corredores, ofereci o CD do Panacea – a primeira produção musical da minha vida – ao que ele agradeceu rapidamente e seguiu apressado.

Na semana seguinte, para minha surpresa, o Panacea havia sido citado em sua coluna e este feliz episódio ainda veio acompanhado de um convite: integrar a O.P.E.P – Oficina Provisória de Experimentação Poética, um grupo que chegou a reunir, além de mim, Patrícia Ahmaral, Ana Gusmão, Ronaldo Gino, Silma Bijoux O’Hara e Mary Lisboa. Fizemos performances poéticas que mesclavam ruído, poesia sonora, teatro, música pop e experimentalismos, isto é, aquela fórmula dadadobelística que é o cerne do Divergência.

Em 2004, quando lancei meu primeiro livro de poemas, Dolabela escreveu a orelha e publicou o texto em sua coluna, no qual ele ressalta algumas aproximações entre mim e um tal de Bruno Verner – figura marcante da segunda fase do Divergência Socialista – nome que me causou interesse e admiração instantâneos: o Divergência adentrava aos poucos minha história musical sem que eu percebesse.

A esta altura, eu já tinha entendido que a década de 1980, quando vivi minha infância, havia sido muito significativa aqui em Belo Horizonte e isso só ultrapassou as montanhas depois que João Daniel, ou, John Ulhoa, deu visibilidade para alguns lampejos da verve do Divergência Socialista por meio do Pato Fu.

Depois vieram programas de rádio, na extinta rádio Lagoinha, performances e muita convivência com Dolabela no Edifício Malleta. Surge então, uma reunião de artistas que viria a se chamar “Caveira My Friend”, uma espécie de versão “atualizada” do Divergência Socialista que reuniu, além de mim, Silma Bijoux O’Hara, Nísio Teixeira, Luiz Lourenço, Ana Gusmão, Alexandre Martins, Hector Gaete, Mamede.

Esta capacidade do Dolabela de operar com formações cambiantes e manter uma característica própria é outra essência presente no Divergência que se tornou uma banda embrião de outros tantos projetos que circulavam ao seu redor. Ter feito parte do Divergência se torna uma característica da cena belorizontina e esse modus operandi atravessa as décadas até chegar nos anos 10 do século XXI, com uma reunião marcante, o Work In progress”, mini festival que reuniu artistas que orbitavam em torno do Divergência e também colocou de novo a banda nos palcos com nova formação, é claro! Agora com Ana Gusmão na bateria e Dota no baixo.

Agora o Divergência retorna com uma formação híbrida, com membros de várias  “dentições” como gostava de dizer Dolabela, de Marompas, Gino até, Ana, Dota, Silma, Mamede e eu. Neste momento tão especial de lançamento deste songbook, que faz esse importante registro para a posteridade desta banda que é base de toda uma estética artística que marca a história da música de nossa cidade, o Divergência Socialista ressurge, reafirmando seu papel medular ao anunciar uma outra forma de lidar com a música pop. Aquela esquina menos badalada do outro lado da rua, na qual a música é uma das possibilidades de linguagens e a palavra tem a mesma relevância do som.

Dolabela vive em cada execução de suas obras, em cada leitura de seus textos, em cada lembrança de seus gestos. As dentições do Divergência continuam atravessando gerações e reafirmando o modus operante dadadobelístico. Como dizia Dolabela: e vai piorar!

 

Fim